sexta-feira, 29 de março de 2024

O poeta-vidente que queria ser vendedor

Saindo da exposição do Krenak no CCBB um poeta me abordou. Me ofereceu uma zine pra ler, disse que seria muito rápido. Eu estava só, por volta de uma hora da tarde, era sexta-feira da paixão, e ele queria que eu soubesse que a abordagem dele seria rápida. Eu me lembrei dos outros poetas que me abordaram na rua e, com calma, perguntei qual poema daquela zine ele mais gostava. Que queria ler a preferida dele. Então ele me deu essa:

quero ver você
atravessar uma nuvem
sem ser abocanhado 
pelo despertar do dia
pelo barulho
quase sem sentido
que advém dos ciclos
da boca dos pássaros
pela língua da chuva
pelo valor de um simples 
cair para um mundo
tão profundo
mundo que é tão parecido
com sua sede de chegar.

Fiquei em choque. Como aquela poesia sabia tanto sobre mim? Ainda relendo os versos, no processo de absorver, ele me olhou e disse "Olha, eu tenho aqui uma mais romântica." e me passou outra zine "Leia a primeira". Tenho a sensação de que ele achou que eu não gostei dessa primeira, mas a verdade é que eu não tinha tido o tempo que precisava pra ela ainda.

Enquanto eu lia a tal romântica, o mundo seguia girando e o movimento na porta do centro cultural estava fervendo. "Olha que lindo uma moça lendo poesia" ele disse pra alguém que passou "Vem ler também". Eu não conseguia me concentrar muito bem com o barulho, com as palavras, com o sacolejar da zine falando da minha vida ali, como se fosse tudo muito normal.
A romântica diz o seguinte:

...
gostaria que você não ficasse
com uma impressão errada
sobre mim.
não acho justo da minha parte
te trazer complicações por conta 
dessa minha confusão,
e até agora eu não estava
sabendo direito o que fazer. 
muitas vezes você me disse
que não queria se envolver
com uma pessoa confusa,

Aqui eu deixei escapar "É isso!", o poeta riu e eu interrompi a leitura, já certa de que iria comprar a zine pra continuar lendo o poeta-vidente, que colocava a minha vida em palavras e saía vendendo por aí. Depois de pagar, ele me perguntou o que eu fazia, ao mesmo tempo que tentava abordar outras pessoas. Eu disse que era professora e a gente riu. Riu um riso cúmplice, de quem já não precisa falar mais nada, porque já sabe a história toda. "Não ri não", eu disse. Mas a gente continuou rindo mesmo assim.

Referências: 1ª poesia, zine "por hoje é só", 2ª poesia, zine "mostrar", Sidney Machado. @sma.1470 @saraumarisolis @sarauoutrosroles (sidneisantos1989@gmail.com)

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