sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A era da impermanência

Como criar raízes em terras griladas?

numa verdade enlameada?

na palavra que não habita a memória?


Como baixar as âncoras 

num lago raso de oásis?

em ilhas privativas de um particular que nunca vi? 

Num mar que não tem cabelo?


Como sentir nesse mundo sem sentido?

nesse planeta temporário

nesse solo escravizado

nesse não-lugar que renasce a cada dia


E o amor

Ah, o amor é só uma ideia... 

A incompatibilidade com esse mundo vai me deixar doente. 

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Ressaca de "O problema dos 3 corpos"

A disputa é a única coisa que se mantém constante, em todos os lugares. Em todas as dimensões do trabalho, do estudo, da família. Há egos feridos na academia, há egos sensíveis na equipe de trabalho, há egos que precisam ser inchados diariamente, alimentados com elogios purgantes de amigos entre aspas. O neto mais querido, o filho mais amado, o primo mais bem sucedido.

Dá pra ver a fragilidade das relações, as mesmas palavras de sempre batendo ponto, sobre ponto, sobre ponto, amontoadas sobre si mesmas, sustentadas em nada. Flutuam no espaço vazio, frio, oco, de 08h às 18h, nos feriados e festinhas de aniversário.

As pessoas não merecem esse mundo nem todas as belezas verdadeiras que há nele. Por que alimentar um ser tão mesquinho, permanentemente cego pelos espelhos da própria vida e das próprias crenças? 

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Xingamento - Gregório Duvivier

 Puta, piranha, vadia, vagabunda, quenga, rameira, devassa, rapariga, biscate, piriguete. Quando um homem odeia uma mulher — e quando uma mulher odeia uma mulher também— a culpa é sempre da devassidão sexual. Outro dia um amigo, revoltado com o aumento do IOF, proferiu: "Brother, essa Dilma é uma piranha". Não sou fã da Dilma. Mas fiquei mal. Brother: a Dilma não é uma piranha. A Dilma tem muitos defeitos. Mas certamente nenhum deles diz respeito à sua intensa vida sexual. Não que eu saiba. E mesmo que ela fosse uma piranha. Isso é defeito? O fato dela ter dado pra meio Planalto faria dela uma pessoa pior?

Recentemente anunciaram que uma mulher seria presidenta de uma estatal. Todos os comentários da notícia versavam sobre sua aparência: "Essa eu comeria fácil" ou "Até que não é tão baranga assim". O primeiro comentário sobre uma mulher é sempre esse: feia. Bonita. Gorda. Gostosa. Comeria. Não comeria. Só que ela não perguntou, em momento nenhum, se alguém queria comê-la. Não era isso que estava em julgamento (ou melhor: não deveria ser). Tinham que ensinar na escola: 1. Nem toda mulher está oferecendo o corpo. 2. As que estão não são pessoas piores.

Baranga, tilanga, canhão, dragão, tribufu, jaburu, mocreia. Nenhum dos xingamentos estéticos tem equivalente masculino. Nunca vi ninguém dizendo que o Lula é feio: "O Lula foi um bom presidente, mas no segundo mandato embarangou." Percebam que ele é gordinho, tem nariz adunco e orelhas de abano. Se fosse mulher, tava frito. Mas é homem. Não nasceu pra ser atraente. Nasceu pra mandar. Ele é xingado. Mas de outras coisas.

Filho da puta, filho de rapariga, corno, chifrudo. Até quando a gente quer bater no homem, é na mulher que a gente bate. A maior ofensa que se pode fazer a um homem não é um ataque a ele, mas à mãe — filho da puta- ou à esposa — corno. Nos dois casos, ele sai ileso: calhou de ser filho ou de casar com uma mulher da vida. Hijo de puta, son of a bitch, fils de pute, hurensohn. O xingamento mais universal do mundo é o que diz: sua mãe vende o corpo. 1. Não vende. 2. E se vendesse? E a sua, que vende esquemas de pirâmide? Isso não é pior?

Pobres putas. Pobres filhos da puta. Eles não têm nada a ver com isso. Deixem as putas e suas famílias em paz. Deixem as barangas e os viados em paz. Vamos lembrar (ou pelo menos tentar lembrar) de bater na pessoa em questão: crápula, escroto, mau-caráter, babaca, ladrão, pilantra, machista, corrupto, fascista. A mulher nem sempre tem culpa.

https://m.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2014/01/1393513-xingamento.shtml 

O que é uma puta?

Algumas definições pra essa palavra guardam um significado econômico. Diz-se de "puta" aquela que tem relações sexuais em troca de dinheiro, sinônimo de prostituta. Outras definições perpassam ideologias sociais em que para adquirir o adjetivo, basta ter relações sexuais com muitos homens. 

Há também dicionários que associam a puta à libertinagem, que é o mau uso da liberdade de um indivíduo, a extrapolação da liberdade. Abre aspas, "licenciosidade de costume, conduta de pessoa que se entrega imoderadamente a prazeres sexuais, a prática do libertino". Até aí, não vi nenhuma ofensa, só o bom e velho controle social dos corpos e desejos femininos. Cabe insultar alguém por praticar o ato sexual de forma profissional e remunerada? Cabe insultar alguém por ter tido muitos parceiros sexuais? Cabe insultar alguém por sentir prazer sexual e querer praticar o máximo que der?

O significado de uma palavra não é apenas o que está posto numa definição dicionária. Ele perpassa a experiência coletiva, unificando pequenas subjetividades, num vocábulo amplo, aberto a interpretações. Não satisfeita com os significados de puta que encontrei, continuei procurando o motivo pelo qual faz com que eu me sinta profundamente ofendida quando me chamam por esse nome. Mas não é por nenhum dos motivos anteriores, é algo que me fere particularmente (aqui entra o nível da subjetividade imposta no significado da palavra).

Então encontrei o seguinte texto sobre libertinagem que também está vinculado ao adjetivo, "quando isso acontece [a libertinagem], os limites são ultrapassados e a integridade física, emocional ou psicológica de outra pessoa é posta em causa. A libertinagem leva a um desrespeito pelo próximo, e indica falta de dignidade e bom caráter".

Achei neste último conceito meu entendimento para puta(o) e finalmente aquilo que me toca, que me ofende. Me xingar de puta não vai fazer com que eu tenha outra visão sobre a liberdade sexual das mulheres, vai me deixar profundamente triste em pensar que estou sendo acusada de ferir alguém, física, emocional ou psicologicamente. Isso sim é um xingamento. Problema é que quando alguém quer te ofender, essa pessoa pode te chamar de qualquer coisa, inclusive se alguém virar pra você e disser "você é uma pedra" com a intenção de magoar, não importa o que realmente significa "pedra", a pessoa quis muito te machucar e isso basta.