quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Mamãe gansa

 No momento, se eu fosse uma carta de Magic, seria uma versão da mamãe gansa com uma cabeça e 4 braços (asas?). A Shiva Gansa. A Shiva Gansa com ímpeto e atropelar cujo efeito é multiplicar os marcadores a cada nova ficha de patinhos gerada. 

Ok. Essa sou eu no momento, mas preciso virar uma Shiva Gansa com vigilância e alcance. É o mais sensato.

Eu durmo comigo

 eu durmo comigo/ deitada de bruços eu durmo

comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu

durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão

longa em que não durma comigo/ como um trovador

agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo

comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo

enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo

comigo às vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que

estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo

vai ter que dormir ao lado.



Angélica Freitas

Gêmea

 A minha menina é frágil e forte. Minha menina ajuda os amigos e dá ótimos conselhos, menos a si mesma. Minha menina se engana convictamente com o namoradinho, porque se importa demais com ele, mais que consigo mesma. Minha menina é boa, fiel e jogou um véu no espelho. Ela não tem interesse em tirar, já nem nota que ele está lá, e se você acha que ela se esqueceu do véu, acredite, ela se esqueceu mesmo foi do espelho. 

Eu vejo uma boa menina, tão boa.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Epigrama n. 2

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa:
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
Porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo despovoado e profundo, persiste.

MEIRELES, C. Epigrama n. 2. In: ______. Viagem. Lisboa:

Editorial Império, [s/d].

Mais uma leitura para o futuro

 Rubem Braga, cujo ofício era driblar os grandes acontecimentos, mirou seu radar noutra bola, infinitamente menor e mais próxima: uma semente trazida pelo acaso ao seu jardim. O enredo, por assim dizer, é ínfimo. Surge um broto. Quase morre. Um amigo diz ser capim, outro afirma ser cana. Descobre-se, depois, ser mesmo um pé de milho, que cresce e é transplantado para o canteiro diante da casa. Fim.

Ao narrar este acontecimento minúsculo, porém, Braga vai criando uma insuspeita identificação entre si e a planta. Num mundo complexo e assustador, em que parecemos evaporar diante de acontecimentos astronômicos, o narrador agarra-se ao pé de milho como este finca as raízes na terra. Deixa de ser, ele também, “um número numa lavoura”. Do banal pro profundo. Do barro à vida. Metonímia “no úrtimo”. Isto é uma crônica.

PRATA, A. Rubem Braga e ‘Breaking bad’. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br>. Acesso em: 30 ago. 2022. [Fragmento adaptado]

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Porque ainda é bom assistir TV à cabo

Meu braço ainda estava doendo, apesar da auriculo. Queria fazer crochê, iniciando um novo projeto. Mas eu não tinha as linhas para o projeto novo e já estou um pouquinho cansada das bolsas que comecei mês passado. Decidi insistir um pouco mais e peguei o projeto antigo, mas  ainda sentia que faltava alguma coisa. Liguei a TV, coloquei no programa de comédia que mais assisti na vida e me deixei afundar naquele mar de familiaridade. 

Dez minutos depois o programa acabou e começou um filme. Um filme que eu já tinha visto, mas que valia a pena ser visto novamente, cada minuto. Freddie Mercury começou a ser exageradamente interpretado, do jeitinho que o cinema gosta e eu me doei pro filme e pro crochê, cantando todas as músicas, sentindo os pelos dos braços subirem, arrepiados. 

De repente tive uma ideia brilhante: como não tinha pensado nisso antes? Eu tinha que ter passado cada dia do carnaval vestindo uma roupa diferente. Mas o que eu tinha na cabeça usando vestidinhos e conjuntinhos? Fala sério, eu teria ficado muito gostosa de calça jeans, blusa branca e bigode. Mariana Mercury. Preciso do próximo carnaval, as epifanias afloravam. Primeiro Freddie, depois Diper e Michael Jackson. 

Era exatamente isso que estava faltando, ser surpreendida pela aleatoreidade da TV, de um jeito que nem eu sabia que precisava. 

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Linhas, agulhas e alfinetes

 — Ora agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. – disse a linha para a agulha.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

ASSIS, M. Um apólogo. In.: Várias histórias. Londrina: 2021

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Nomenclaturas 2

 Não se importe com o nome, só continue escrevendo. Quem gosta de nome é gramático e nós somos literários.

A lente do amor

 A lente do amor grudou na retina e trouxe a realidade

para a paixão.
Agora, nela, vê-se poros abertos, veias desconcertantes
e azuis ao lado das narinas, que inspiram e expiram
o cansaço enfisêmico dos pulmões que já inflaram de
êxtase e susto
espera e dor.

Como é engraçada a miopia dos amantes histéricos.

Mas os olhos podem descansar do criativo,
as lentes revelam o cabelo debaixo da peruca e,
abaixo do cabelo, o couro. Que por vezes
escama e coça e dá vontade de escalpelar.

Como é engraçada a verdade que ninguém quer ouvir.

E aqueles, antes cegos, quase idiotas, reconhecem
primeiro a sombra, depois os relevos,
enfim as cores e as texturas.
E as lentes preenchem a transparência, entupindo-a
de estômagos, pâncreas, fígados e intestinos;
não dando mais para ver-se – vê-se o outro.
Então há o horror, e por fim, que é começo, o amor.

Como é engraçada a vida, posto que é só isso.


Fernanda Young

Sou uma casa completa

 Sou uma casa completa.

Tenho recantos em minhas
Dobras, lareira e um belo
Jardim de tulipas negras.

Também sou uma caravela
Que corre ruidosa e
Escorregadia sobre os oceanos
Que conduzem a novos
Continentes.

E uma caneta macia de um
Garçom orgulhoso; ele gosta
De ouvir: – Que caneta boa!
Quando assinam a conta.

Posso ser os elásticos de
Pompom nas chiquinhas de
Uma menina que chora,
Chata, no pátio ao lado.

Ou um simples copo de água
Oferecido a alguém que
Trouxe uma pesada
Encomenda.

Quiçá sou eu, sim, eu.
Eu mesma. Sofisticada e
Demencial. Essa que fala
Demais e diz que te ama,
Que não quer ir, e não quer
Ficar aqui.

Esse aqui que vaga e
Ressente.

Fernando Young, A mão esquerda de vênus