segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Dona Marlene

A dona Marlene sempre foi uma senhora muito elegante. Apesar de hoje eu saber o que é riqueza de verdade, quando era criança, minha referência de boa vida era a dela. Ia e voltava de táxi para o shopping quando não havia nem sombra da existência de Uber, andava sempre com notas de 50 na carteira para pagar, por exemplo, bibelôs de lojas chinesas. Amava joias, como amava, contava sempre de todo ouro que possuiu no primeiro casamento, a casa do Estácio que era mobiliada com móveis de madeira de verdade, "não essa porcaria que vendem hoje". Restou dessa casa uma penteadeira e as louças que era muito bem quistas, mas nunca saíam do armário, nem mesmo nos jantares de ano novo judeu em setembro. Ela era tão chique que escolheu o próprio nome, porque o de batismo, escolhido pela família cearense, em homenagem a uma santa católica, não condizia com sua condição de convertida. No novo batismo se chamava Sara, mulher importante da torá. Na Tijuca, Marlene, que ficava ainda mais imponente quando se colocava "dona" na frente.

Dona Marlene nunca fazia comida, mas sabia cozinhar muito bem e vivia falando de como as suas receitas eram mais saborosas que as da rua. Aliás, para ela a comida tinha que ser mais bonita que saborosa, porque se alimentava de coisas belas, via coisas belas, vestia coisas belas. A vida era bela pra ela. Gostava de passear com seu grupo imenso de amigas, iam jogar cartas, bingos, cassinos, fechavam uma vã só delas para ficar o dia todinho por Teresópolis ou Petrópolis para fazer compras. Jantares. Ah, os jantares que ela ia. Para os jantares tinha que tirar as boinas - que cobriam sua cabeça religiosa - e vestir perucas. Perucas e vestidos, vestidos e sapatos, sapatos que combinavam perfeitamente com as bolsas e carteiras. Carteiras que não viam uma moeda ou nota de 2 reais sequer porque tudo ia para o cofre de caridade da sinagoga. Esqueci de mencionar que nesses jantares havia música típicas e todos se levantavam para dançar as coreografias e é claro que ela havia tomado aulas previamente e sabia perfeitamente os passos. 

Não importa qual, toda sexta-feira às 17h queimavam velas na bandeja de vidro, nos castiçais de prata, diante da reza em hebraico. Em sua casa, as velas tinham que estar acesas e ela rezava. E sábado não podia fazer negócio, não podia fazer esforço, nem mesmo carregar as chaves de casa na mão, iam penduradas na alça da calça, porque Ashém descansou no sétimo dia e em shabat judeu nenhum trabalha. A parte dos costumes, haviam coisas que eram somente dela, como a coleção de elefantes, o amor por armários embutidos e a cantoria em diversos idiomas estrangeiros, mas o que ela mais gostava era o francês (que estudou em colégio para moças). Ela teve dois filhos homens, dois netos homens, então caiu sobre mim o desejo de paparicar uma menininha. Lacinhos, blusinhas, vestidos, pulseiras, brincos, diários, Dona Marlene sempre me dava agrados. Me levava para passear, pagou para que eu estudasse hebraico com ela, dentro das portas do templo religioso, com professora judia, com alunas que também usavam perucas e tinham o cabelo raspado. 

Ela viveu o desgosto da morte do filho mais velho e não chegou a fazer sua sonhada viagem a Israel. É hoje uma vítima do Alzheimer, não se lembra dos costumes, do judaísmo, e mesmo que esteja dentro da casa que mobiliou a seu gosto, acredita estar de passagem num lugar desconhecido. Quer ver a mãe e a avó que morreram há tantos anos. Dona Marlene hoje não é nem uma lembrança de si mesma, ficou perdida no tempo, em histórias como essa que eu contei, vive na mente de quem se lembra dela. 


domingo, 30 de agosto de 2020

É menina!

 É menina 


É menina, que coisa mais fofa, parece com o pai, parece com a mãe, parece um joelho, upa, upa, não chora, isso é choro de fome, isso é choro de sono, isso é choro de chata, choro de menina, igualzinha à mãe, achou, sumiu, achou, não faz pirraça, coitada, tem que deixar chorar, vocês fazem tudo o que ela quer, isso vai crescer mimada, eu queria essa vida pra mim, dormir e mamar, aproveita enquanto ela ainda não engatinha, isso daí quando começa a andar é um inferno, daqui a pouco começa a falar, daí não para mais, ela precisa é de um irmão, foi só falar, olha só quem vai ganhar um irmãozinho, tomara que seja menino pra formar um casal, ela tá até mais quieta depois que ele nasceu, parece que ela cuida dele, esses dois vão ser inseparáveis, ela deve morrer de ciúmes, ele já nasceu falante, menino é outra coisa, desde que ele nasceu parece que ela cresceu, já tá uma menina, quando é que vai pra creche, ela não larga dessa boneca por nada, já podia ser mãe, já sabe escrever o nomezinho, quantos dedos têm aqui, qual é a sua princesa da Disney preferida, quem você prefere, o papai ou a mamãe, quem é o seu namoradinho, quem é o seu príncipe da Disney preferido, já se maquia dessa idade, é apaixonada pelo pai, cadê o Ken, daqui a pouco vira mocinha, eu te peguei no colo, só falta ficar mais alta que eu, finalmente largou a boneca, já tava na hora, agora deve tá pensando besteira, soube que virou mocinha, ganhou corpo, tenho uma dieta boa pra você, a dieta do ovo, a dieta do tipo sanguíneo, a dieta da água gelada, essa barriga só resolve com cinta, que corpão, essa menina é um perigo, vai ter que voltar antes de meia-noite, o seu irmão é diferente, menino é outra coisa, vai pela sombra, não sorri pro porteiro, não sorri pro pedreiro, quem é esse menino, se o seu pai descobrir, ele te mata, esse menino é filho de quem, cuidado que homem não presta, não pode dar confiança, não vai pra casa dele, homem gosta é de mulher difícil, tem que se dar valor, homem é tudo igual, segura esse homem, não fuxica, não mexe nas coisas dele, tem coisa que é melhor a gente não saber, não pergunta demais que ele te abandona, o que os olhos não veem o coração não sente, quando é que vão casar, ele tá te enrolando, morar junto é casar, quando é que vão ter filho, ele tá te enrolando, barriga pontuda deve ser menina, é menina. 


(Gregório Duvivier. Folha de S. Paulo, 16 set. 2015.)

sábado, 8 de agosto de 2020

Dona Mariana e seus ...

 Fico repetindo para mim mesma o fato curioso de que Vinícius de Moraes se casou nove vezes até hoje, porque desde que ela me disse essa frase eu estive impactada. Seria uma vida inteira o suficiente para bem amar todas essas nove pessoas? Aos 25 anos já tenho uma lista que conta por si mesma de verdadeiros amores do passado. Não que fossem todos meus maridos, longe disso, alguns deles nem eram homens, outros nem tiveram nenhum tipo de relação carnal comigo.
Pode ser que eu nunca perca o impacto desse fato, mas Vinícius, será que é pelo que aconteceu com você ou porque eu estava diante de uma revelação de mim mesma?