A dona Marlene sempre foi uma senhora muito elegante. Apesar de hoje eu saber o que é riqueza de verdade, quando era criança, minha referência de boa vida era a dela. Ia e voltava de táxi para o shopping quando não havia nem sombra da existência de Uber, andava sempre com notas de 50 na carteira para pagar, por exemplo, bibelôs de lojas chinesas. Amava joias, como amava, contava sempre de todo ouro que possuiu no primeiro casamento, a casa do Estácio que era mobiliada com móveis de madeira de verdade, "não essa porcaria que vendem hoje". Restou dessa casa uma penteadeira e as louças que era muito bem quistas, mas nunca saíam do armário, nem mesmo nos jantares de ano novo judeu em setembro. Ela era tão chique que escolheu o próprio nome, porque o de batismo, escolhido pela família cearense, em homenagem a uma santa católica, não condizia com sua condição de convertida. No novo batismo se chamava Sara, mulher importante da torá. Na Tijuca, Marlene, que ficava ainda mais imponente quando se colocava "dona" na frente.
Dona Marlene nunca fazia comida, mas sabia cozinhar muito bem e vivia falando de como as suas receitas eram mais saborosas que as da rua. Aliás, para ela a comida tinha que ser mais bonita que saborosa, porque se alimentava de coisas belas, via coisas belas, vestia coisas belas. A vida era bela pra ela. Gostava de passear com seu grupo imenso de amigas, iam jogar cartas, bingos, cassinos, fechavam uma vã só delas para ficar o dia todinho por Teresópolis ou Petrópolis para fazer compras. Jantares. Ah, os jantares que ela ia. Para os jantares tinha que tirar as boinas - que cobriam sua cabeça religiosa - e vestir perucas. Perucas e vestidos, vestidos e sapatos, sapatos que combinavam perfeitamente com as bolsas e carteiras. Carteiras que não viam uma moeda ou nota de 2 reais sequer porque tudo ia para o cofre de caridade da sinagoga. Esqueci de mencionar que nesses jantares havia música típicas e todos se levantavam para dançar as coreografias e é claro que ela havia tomado aulas previamente e sabia perfeitamente os passos.
Não importa qual, toda sexta-feira às 17h queimavam velas na bandeja de vidro, nos castiçais de prata, diante da reza em hebraico. Em sua casa, as velas tinham que estar acesas e ela rezava. E sábado não podia fazer negócio, não podia fazer esforço, nem mesmo carregar as chaves de casa na mão, iam penduradas na alça da calça, porque Ashém descansou no sétimo dia e em shabat judeu nenhum trabalha. A parte dos costumes, haviam coisas que eram somente dela, como a coleção de elefantes, o amor por armários embutidos e a cantoria em diversos idiomas estrangeiros, mas o que ela mais gostava era o francês (que estudou em colégio para moças). Ela teve dois filhos homens, dois netos homens, então caiu sobre mim o desejo de paparicar uma menininha. Lacinhos, blusinhas, vestidos, pulseiras, brincos, diários, Dona Marlene sempre me dava agrados. Me levava para passear, pagou para que eu estudasse hebraico com ela, dentro das portas do templo religioso, com professora judia, com alunas que também usavam perucas e tinham o cabelo raspado.
Ela viveu o desgosto da morte do filho mais velho e não chegou a fazer sua sonhada viagem a Israel. É hoje uma vítima do Alzheimer, não se lembra dos costumes, do judaísmo, e mesmo que esteja dentro da casa que mobiliou a seu gosto, acredita estar de passagem num lugar desconhecido. Quer ver a mãe e a avó que morreram há tantos anos. Dona Marlene hoje não é nem uma lembrança de si mesma, ficou perdida no tempo, em histórias como essa que eu contei, vive na mente de quem se lembra dela.